domingo, 23 de fevereiro de 2014

A CRÔNICA COMO GÊNERO LITERÁRIO

A CRÔNICA COMO GÊNERO LITERÁRIO

Mesmo praticada desde meados do século XIX, só cem anos depois a crônica começou a ser assumida como literatura. Segundo Beatriz Resende, Eduardo Portella, no livro Dimensões I, de 1958, foi um dos primeiros a reconhecê-la "como um gênero literário específico, autônomo" (Portella, 1978: 81). O crítico vincula esse processo à publicação freqüente, naquele momento, de livros de crônicas que transcendiam "a sua condição puramente jornalística para se constituírem em obra literária" (Idem: 81).
Tal visão é partilhada por Davi Arrigucci Júnior no ensaio "Fragmentos sobre a crônica", já na década de 1980. Em perspectiva historiográfica, o estudioso constata que a crônica floresceu amplamente no Brasil, com participação específica e expressiva na vida literária nacional, "a ponto de constituir um gênero propriamente literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às vezes da lírica" (Arrigucci, 1985: 44).
Portella, por outro lado, relativizou uma suposta autonomia da crônica considerando-a ontologicamente ambígua: "Até que ponto pode ou deve ser considerado gênero autônomo uma entidade poética que como é o caso da crônica, tem a caracterizá-la não a ordem ou a coerência, mas exatamente a ambigüidade" (Portella, 1978: 82). Nessa abordagem, o crítico realiza também um certo rebaixamento do gênero ao afirmar que ele seria "quase tão autônomo quanto o poema, o romance ou o conto" (Idem: 81).
Esse processo de discursivização da crônica como um gênero literário inferior pode ser encontrado no fundamental artigo "A vida ao rés-do-chão" de Antonio Candido. De acordo com o crítico, seria inimaginável "uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas" (Candido, 1993: 23). Contudo, Candido não deixa de revelar a outra face virtuosa da crônica: por ser menor, solta e despretensiosa, ela se aproximaria de uma forma mais efetiva dos leitores, trazendo a sensibilidade do cotidiano.

Há ainda quem recuse encará-la como literatura em função daquele caráter ambíguo, fronteiriço e heterogêneo, destacado acima por Portella. Luiz Roncari aponta a falta de um estudo sistemático dos traços não-literários empregados pelos cronistas:

"erroneamente, procura-se na crônica os gêneros tipicamente literários, esquecendo-se que ela mesma não chegou a se cristalizar num, mantendo-se na fronteira, como um canal de comunicação ou zona de contato entre esferas da alta e baixa cultura"
(Roncari, 1985: 15)
Vai se perceber que tais categorias críticas de "gênero menor" e de "gênero fronteiriço" marcarão as características que se atribuíram à crônica.
A maior aproximação do público, referida por Candido, pode ser em parte relacionada a um recurso estilístico recorrente nesses textos: a aparência de conversa fiada enraizada na realidade, mas com tratamento ficcional. Nela se observa a construção de diálogos (e não a simples transcrição da conversa) e de personagens (seres inventados com vida real e envolvimento de espaço, tempo e atmosfera).
Contudo, esse lado ficcional não encobre o vínculo com o dia-a-dia, com o jornal e com o fait divers, já que, a rigor, baseia-se em um fato crível do cotidiano. Pauta-se, portanto, por elementos do discurso realista, visando à construção do "efeito de real". Essa dualidade permeia os textos, fazendo-os ir além do simples documentalismo (presente nos textos informativos de qualquer publicação noticiosa).
A circunstância aparece como o fato pequeno do dia-a-dia, que ganha relevo e destaque ao ser fixado, uma vez que passaria desapercebido para um observador comum. Na efemeridade do instante se encontraria aquilo que se entende por riqueza literária:

"O cotidiano surge, desse ponto de vista, como o lugar da mistura artisticamente mais fecunda, pois vira uma espécie de modelo da vida real para o escritor: é onde o mais alto aparece mesclado ao baixo; o puro ao impuro; o poético agarrado ao erótico; a cidade atravessada pelo campo; o passado preso ao presente; o símbolo à terra; o tradicional ao moderno; o espírito à matéria (Arrigucci, 1997: 15)".

 Seguindo também a lógica do "gênero menor", o cronista deve-se focar, sobretudo, no cotidiano dos mais pobres. Na dignidade do mais humilde estaria o mais sublime. A ênfase, assim, estaria sempre no pequeno: tanto naquilo que o narrador narra, quanto na classe social em que se encontra o fato narrado. Contudo, cabe ao cronista ir além do evento miúdo do cotidiano, se não quiser naufragar no efêmero. Ele parte em busca de uma saída literária para contornar a situação.  
Dessa maneira, no interior da crônica, o fait divers passaria por um processo de territorialização, tornando-se informação, uma vez que é integrado artisticamente ao fluxo da vida. Levando-se em conta a divisão aristotélica entre literatura e história, essa feição poética pretendida está vinculada à própria capacidade do cronista em dar unidade de ação a fatos determinados. Segundo Aristóteles, esse atributo caracteriza a poesia e não a história (categoria em que podemos acrescentar o jornalismo), que trabalha com fatos desconexos e inconclusos que apresentam unidade de tempo e não de ação.
Conseqüentemente, o narrador da crônica seria sujeito e objeto ao mesmo tempo, uma vez que narra sua história (sujeito) e é objeto do autor imaginado. Daí viria também o tom de veracidade jornalística; o autor é o narrador que relata as experiências que vê de forma direta, acentuando a verossimilhança.
Esse trabalho narrativo de aproximação do leitor enraíza-se no tempo presente, sem deixar de fazer referência a um passado imediato marcado, quase sempre, por um sentimento de perda:

"Se o jornal, pelo quadro do presente que oferece, cria a expectativa do futuro, o cronista só pode responder com seu realismo, de quem já viveu, portanto mais sábio, e já não espera nada, encarando sempre o futuro com ironia e relativismo [...] falando do tempo imediato, pretende falar de um outro tempo" (Roncari, 1985: 15).

O gênero ajusta-se, portanto, a uma visão crítica do presente que pode ganhar uma roupagem pessimista. Não poderia, assim, anunciar um futuro novo e melhor, pois se nivelaria à matéria publicística ou à retórica política da qual também busca se diferenciar.
Pensando nas condições práticas de produção, a liberdade do cronista encontraria restrições nos limites definidos pela publicação para a qual colabora. A ideologia do veículo corresponde aos interesses de seus consumidores, direcionada pelo proprietário e/ou pelos editores chefes de redação. Outra limitação seria o próprio espaço destinado ao cronista (em geral, uma coluna vertical). Há um número restrito de laudas, obrigando o redator a explorar da maneira mais econômica possível o pequeno espaço de que dispõe. É dessa parcimônia espacial que nasceria, em parte, a riqueza desse "gênero menor": caberia ao cronista realizar um corte profundo na representação da realidade por meio da metonímia.

Alguns estudiosos desse tipo de narrativa curta costumam sustentar o discurso de que a crônica seria um gênero carioca. Historicamente, pode-se dizer que ele foi praticado com maior intensidade nos jornais do Rio de Janeiro. Mas, não se tratou de uma atividade exclusiva, pois em outros pontos do país, jornalistas e literatos também a praticavam (o próprio Graciliano no remoto interior alagoano é exemplo disso). Cada autor construirá a imagem da realidade imediata da cidade em que vive ou em que viveu.
Para um cronista rotineiro, às vezes, estrategicamente, pode faltar assunto, levando-o a deixar o comentário dos fatos da semana para se aproximar doconceito de arte que prescinde de matriz realista imediata, imitando antes modelos, estruturas ou discursos da tradição do que situações empiricamente demonstráveis. O maior interesse recairia sobre os limites da própria crônica, ou seja, sobre o tema do próprio texto como resultado da elaboração de seu narrador que constrói o mundo representado à medida que narra.
Segundo Davi Arrigucci, essa autonomia da crônica em relação ao circunstancial (ao fato, à novidade, à informação) só foi possível depois de um longo aprendizado que vem desde o final do século XIX em que pesa a modernização da imprensa brasileira: à medida em que o discurso jornalístico vai deixando de lado um tom ficcional e se pautando por textos objetivos, a crônica realiza o movimento inverso.

"... a circunstância corriqueira fica reduzida ao mínimo possível, e a crônica parece que se enrola em si mesma e se solta [...] animada com o mais profundo da experiência humana [de seu narrador ficcional]" (Arrigucci, 1985: 46).

Por outro lado, continua também a incorporação de elementos do discurso realista (em que se inclui o próprio discurso jornalístico) com o propósito de simular a imitação da vida e não da arte.  
[...]

CRÉDITOS:  Trecho do artigo de autoria de Thiago Mio Salla que é parte da monografia Crônica: jornalismo em Graciliano Ramos apresentada à Escola de Comunicações e Artes para obtenção do título de bacharel em jornalismo.
Publicado in  http://www.eca.usp.br/caligrama/n_2/7%20ThiagoSalla.pdf

(Thiago Mio Salla, Jornalista, mestrando em Ciências da Comunicação - ECA/USP e graduando em Letras pela FFLCH/USP).


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